terça-feira, 3 de junho de 2014

A liberdade ordinária do Compadre Washington



Semana passada foi assunto a proibição pelo Conar – Conselho de Autorregulamentação Publicitária – do anúncio do site de vendas Bom Negócio, em que o cantor Compadre Washington chama uma mulher de “ordinária”. Em épocas menos preocupadas com a correção política, certamente as 50 reclamações femininas que tiraram o comercial do ar não teriam sido levadas em conta.
Muita gente se manifestou a favor do Compadre Washington, tratando a questão (de maneira equivocada) como se fosse um ataque à liberdade de expressão. Como de costume, a falsa citação de Voltaire, "posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo", apareceu. O próprio Washington lançou um comunicado lamentável à imprensa, em que diz “É um jeito meu de falar, uma forma que considero carinhosa de apelidar uma mulher". Ordinária. Ok, Compadre.
Longe de mim defender o humor grosseiro do Compadre Washington, a sua banda É O Tchan ou as piadas machistas, ainda mais em anúncios comerciais. Mas este caso tem umas sutilezas que vale a pena comentar. Primeiro, que é uma boa campanha. Os anúncios anteriores, com Narcisa Tamborindeguy, Paulo Gustavo, Sérgio Mallandro e Supla, sem ser exatamente aqueles comerciais em que o contratado se expõe, como a língua presa de Romário no anúncio da Devassa, mostram os convidados como tipos chatos e falastrões, usando seus próprios estilos e bordões extravagantes.
Nesse tipo de comercial, em que o convidado é, por assim dizer, pago para ser maltratado (e não para emprestar sua credibilidade – mas, em alguns casos, até o contrário dela), a sensação é sempre algo entre a vergonha alheia e a satisfação cruel. O acerto do Bom Negócio foi não associar essa exposição “negativa” a uma forma de sadismo social, mas a uma ideia legítima. Os convidados representam objetos sem uso, que são vendidos quando passam dos limites.
Tanto em termos de sustentabilidade e ecologia quanto em termos metafísicos, é legítimo o conceito de que um objeto sem uso possa ser visto como uma presença desagradável, negativa, e não simplesmente inerte. Que tem que ser passado adiante, achando um novo lar, para ser “curado”. A idéia seria mais ou menos como um trabalhador desempregado, que não sabe o que fazer e vai ficando intratável.


Assim, o Compadre Washington vira uma espécie de vilão, o elemento inconveniente que é eliminado (vendido) pelo produto-plataforma anunciado. A fala preconceituosa dele é uma subnarrativa, e que não é empoderada ou legitimada na conclusão; a narrativa central não é preconceituosa em si mesma, e seu uso do humor é inteligente.
Não é um anúncio de conteúdo feminista, porque quem reage às groserias não é a mulher, que fica sem ação, mas o marido, fazendo inclusive cara de “prefiro não saber” ao fazer Compadre Washington desaparecer (na verdade ele sequer consegue completar a palavra “ordinária”). O protagonismo é totalmente masculino. Mas, nesse caso, a reprimenda politicamente correta pegou numa camada quase irrelevante. Ainda assim, acho melhor que ela exista.
Às vezes corre-se o risco de equívocos, como no caso da acusação de apologia ao estupro à Azougue Editorial, do editor Sergio Cohn, no livro Manual de Boas Maneiras para Meninas, de Pierre Louÿs (1870-1925). Esse livro é um clássico libertino escrito em forma de paródia aos manuais de etiqueta da época de seu lançamento, 1917.
Acontece que essa edição nacional, de 2006, foi patrocinada pela cerveja Devassa, e a capa não faz nenhum esforço em esclarecer a natureza de seu conteúdo. Como se vê, publicidade não é um bom lugar para distrações. Por uma razão simples: publicidade quer vender, não mudar mentalidades. E, para vender, legitimar preconceitos é sempre um caminho mais óbvio. Eu, por mim, já acho a mera existência de uma cerveja chamada “devassa”, num país que se associa cerveja ao sexismo mais tosco, uma forma de ofensa.
Fonte Blog do Alex Nunes

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